Posted on julho 14, 2020
by Ciranda
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Com a ajuda de Gabriel Marques, pesquisador, palestrante e escritor do assunto, trazemos alguns insights que podem auxiliar professores no discurso profundo e transformador do racismo e da discriminação
Poderia ter sido apenas mais um caso de racismo, mais um crime para as estatísticas, mas a morte de George Floyd está sendo escrita a caneta na história mais recente; ganhou voz e despertou comunidades mundo afora na luta contra o preconceito, o abuso de poder e a desigualdade social.
No Brasil, inclusive, o caso de Floyd se junta ao do menino João Pedro e tantos outros, ilustrando de maneira bem brasileira este que é um dos problemas mais profundos, devastadores e persistentes da sociedade.
Impulsionado em grande parte por jovens, o movimento ecoa nas salas de aula de maneira natural (alicerçada inclusive pela BNCC – Base Nacional Comum Curricular) e reacende discussões, tão necessárias em qualquer das camadas sociais. Mas falar do assunto com propriedade, propósito e de maneira transformadora exige atenção dos professores e mestres.
Para nos ajudar na criação de uma abordagem diferenciada, que incida e contribua na formação de alunos críticos, buscamos a ajuda de Gabriel Marques, bacharel em Direito, publicitário, especialista em “Desenvolvimento Social” e autor de vários livros, dois dos quais na área racial: “Da Senzala à Unidade Racial” (1996) e “Acendedores de Velas” (2001).
Gabriel defende a abordagem do assunto em sala de aula pelo viés da igualdade, da unidade e da busca por soluções em conjunto, sempre tendo como base dados estatísticos, científicos e até religiosos. Confira o resumo dessa rica conversa dividida em tópicos para o educador de qualquer disciplina:
O racismo ganhou os noticiários, as mídias sociais e se tornou urgente. Tratar o tema e suas raízes em sala é importante não só agora, mas sempre, na intenção de minimizar danos já causados, evitar novas vítimas e permitir a própria evolução da humanidade.
“O racismo é um dos problemas mais funestos e mais persistentes através da história e continua impedindo o desenvolvimento das potencialidades ilimitadas de suas vítimas, corrompendo aqueles que perpetram tais ações discriminatórias, desvirtuando o progresso civilizatório. Os efeitos são devastadores para poderem ser permitidos sob quaisquer pretextos”, ilustra Gabriel Marques, que destaca o preconceito mais perverso sobre negros e pardos, fato traduzido em indicadores sociais e estatísticas econômicas que se encontram ao alcance de todos.
Já foram muitas as vitórias nas últimas duas décadas a favor das minorias, com o surgimento de legislação pertinente visando tanto sua proteção, quanto a redução das desigualdades, mas é preciso ajuda dos educadores para promover discussões mais aprofundadas em sala de aula, garantindo que o respeito e a igualdade aconteçam na prática.
“A evidência do tema nas mídias é um indicativo de que não basta uma lei escrita para a garantia da igualdade ou de direitos, mas compreensão e mudanças efetivas e mais sutis precisam ocorrer no âmbito da educação, da cultura e do coração, de modo a se criar uma sociedade mais justa e, por que não dizer, mais humana”, diz Marques.
Levar a realidade que nos cerca (ou como lembra Gabriel, que muitas vezes “não nos deixa respirar”) para dentro da sala de aula deve ser uma prática comum e mais eficiente, porque chama a atenção e mantém o interesse do aluno.
No caso do racismo, ainda é preciso acrescentar uma dose de empatia. “O professor deve estar sensível à dor do outro, de modo que de suas palavras possam emanar o perfume da sinceridade”, aconselha Gabriel.
Ainda segundo ele, outra ferramenta importante para o educador lançar mão é o discurso e conceitos da unicidade da humanidade e da unidade na diversidade:
“Há que trazer à tona e compreensão dos estudantes alguns elementos centrais, tais como o fato de que todos temos uma origem comum, o que é sustentado tanto pelos Escritos Sagrados de todas as tradições religiosas, como pelos diferentes ramos da ciência – biologia, antropologia, psicologia, etc. – num claro indicativo de que somos uma única espécie, um só povo”.
Gabriel Marques
É possível trabalhar a necessidade do reconhecimento da igualdade sob diferentes aspectos:
Ao final de qualquer uma das abordagens, o aluno deve compreender que o ser humano e a sociedade só poderão evoluir a partir do momento em que as diferenças forem deixadas de lado para dar lugar à força da sinergia que move o mundo e abre caminho para a inovação.
“Tal como numa corrente, a medida de sua fortaleza ou capacidade de resistência é sempre avaliada por seu elo mais fraco e não pelo mais forte. Assim, qualquer injustiça identificada contra um dos membros da sociedade humana deveria ser prontamente restaurada em benefício do todo”, exemplifica Marques.
É natural e muito benéfico que o assunto gere debates em sala, isso porque os alunos, de qualquer idade, estão ligados às suas comunidades, famílias e mesmo redes sociais. Quando um jovem toma conhecimento de injustiças sociais ou as experimenta ele mesmo, irá desejar, seguramente, evocar o tema com ar de revolta. Assim, alerta o especialista:
“É neste contexto e momento que os professores atentos podem melhor gerar aprendizagem, aproveitando o interesse já existente num tema transversal e canalizando as energias e debates para um aprofundamento no conhecimento do problema e, inclusive, na busca de soluções ou ações positivas”.
Um bom debate, ou melhor, um debate bem administrado, vai correlacionar fatos à rotina de cada um, às experiências de vida dos participantes. E isso pode acontecer de maneira interdisciplinar, com o professor fazendo links e conexões dos acontecimentos e dados estatísticos, a fim de capacitar cidadãos conscientes e críticos.
Em parceria com sua esposa, que é educadora, Gabriel Marques desenvolveu um programa de formação de professores com base nos princípios da unicidade da humanidade e unidade na diversidade. Com o nome “Educando crianças livres de preconceito”, a intenção é apoiar esse profissional, que desempenha um papel tão importante na construção da sociedade, para combater as mazelas sociais utilizando como arma o conteúdo acerca da igualdade dos seres humanos.
Aplicado em diversas instituições da Bahia, estado-base de Gabriel, o programa já existe há 20 anos em formato de seminário, com conteúdo relevante correlacionado à existência do preconceito. São compilações de declarações cientificas e dados estatísticos atualizados sobre as disparidades sociais e econômicas, além de vídeos inspiradores que ressaltam tanto o valor e a beleza da diversidade quanto a urgência da eliminação do racismo e discriminação de gênero, religião, nacionalidade ou outra, além de enfatizar as evidentes interações globais que crescentemente deverão ser caracterizadas por maior cooperação.
O programa conta ainda com sessões de debate, reflexão e identificação de elementos e abordagens educativas. Tudo com a finalidade de criar, em conjunto, ações curriculares para um processo educativo livre de preconceitos e mais aberto às diferenças.
“Durante toda atividade educativa, o foco, entretanto, é nos aspectos positivos da diferença como contribuição ao todo, no sentido da complementariedade, e não como algo negativo. Assim, os professores são encorajados a identificar e enfatizar, além da especificidade e diversidade, os pontos que nos unam”, explica Gabriel.
Segundo ele, ainda, atividades voltadas aos pais e comunidade escolar, como as tradicionais feiras das nações e outros da mesma natureza, são também grandes oportunidades para colocar o aprendizado sobre o tema racismo em prática: “A ideia central sugerida para tais importante ocasiões é um foco naquilo que nos une, enquanto comunidade de nações, dentro da compreensão da necessidade de maior cooperação, reciprocidade e ajuda mútua, voltando-se a fortalecer aqui o ideal de um mundo unificado, de cidadania mundial – o que, naturalmente, não descarta nem busca reduzir o amor à própria pátria, mas eleva-o a uma dimensão”, destacou.
A respeito desse espírito de união, Marques ainda exemplifica: “Eventos esportivos, tal como as Copas de futebol que se repetem no tempo, longe de ofuscar os desafios que confrontam a humanidade, deveriam levar, em especial os mais jovens, a observar e aprender com os exemplos do trabalho em equipe, jogo limpo, coragem e firme empenho dos participantes”.
O programa desenvolvido pela família Marques trabalha a interação entre o local e o global como ponto central do processo educativo, intitulado de “planetização da humanidade”.
Não à toa, essa também é uma das premissas da Fé Bahá’í, religião nascida no Irã que figura entre as mais novas surgidas na humanidade, estando também entre as que mais crescem atualmente. Gabriel faz parte da Comunidade Bahá’í do Brasil e, em suas pesquisas e materiais educativos, traz muitas das revelações das escrituras sagradas do profeta Bahá’u’lláh (1817-1892).
“Estamos todos experimentando um processo intitulado como o da ‘planetização da humanidade’, com maiores ligações de interdependência entre os povos, reforçando a visão de Bahá’u’lláh de que ‘A Terra é um só país e os seres humanos seus cidadãos’, e que os problemas que ora aflige os diferentes povos são e serão cada vez mais de âmbito global, requerendo ações igualmente de tal amplitude, embora o tratamento efetivo dependa dos indivíduos vivendo no nível local”, diz.