Criando uma sociedade melhor: como a educação humanista poderá contribuir?

Especialistas em educação e cidadania falam sobre quais valores serão fundamentais para que a sociedade consiga dar uma resposta mais humana em crises como a do Covid-19

Em todo o mundo, o coronavírus revelou falhas profundas em nossa sociedade. Muito se fala que a pandemia mudou as sociedades, mas é mais verdadeiro dizer que ela tem funcionado com uma lente para trazer nossa situação global em foco mais nítido. Uma das questões mais importantes é a forma como nos relacionamos com o ambiente, com os nossos semelhantes, a maneira como produzimos e utilizamos conhecimento e como o transformamos.

Importante, porém, é perguntar: faremos melhor na próxima crise? O que precisamos, e o que podemos fazer melhor, para gerenciar uma crise de saúde pública de tal enormidade? Podemos (e devemos) repensar a civilização e valores para que nas próximas crises a sociedade consiga dar uma resposta mais efetiva e, sobretudo, mais humana.

Acompanhamos o bate-papo sobre educação humanista promovido pelo evento Grande Encontro da Educação 2020, da Revista Educação, na tentativa de encontrar algumas respostas para as perguntas do parágrafo anterior. Confira neste artigo o que alguns dos mais importantes especialistas da área de educação e cidadania falam sobre os problemas trazidos pela pandemia, os valores de uma educação humanista e como podemos agir melhor no futuro.

Educação a distância e comunicação

Para o mestre em Ciências da Educação, José Pacheco, o primeiro ponto de questionamento é o a comunicação utilizada no ambiente escolar. Para ele, foi surpreendente ver professores angustiados, durante este isolamento, por não conseguir chegar até os alunos que eles não tinham computadores compatíveis.

Educação a distancia acontece mesmo presencialmente em sala de aula. Estamos no 4.0 a caminho do 5.0. Já não é o protagonismo do sujeito o mais importante na aprendizagem, é o paradigma da comunicação. Se nós quisermos realmente uma escola integrada à comunidade, e não apartada da realidade que a serve, teremos que pensar em Lauro de Oliveira Lima, que propõe a escola da comunidade, pensar em Agostinho da Silva, que falava que aprendemos uns com os outros, temos que pensar em Paulo Freire, que dizia que aprendíamos na intersubjetividade e não no indivíduo”, explica.

José Pacheco é criador da Escola da Ponte, instituição localizada em Portugal, que desde 1976 tem inspirado muitos educadores com seu modelo inovador de ensino e gestão, marcado pela ausência de salas de aula, séries, disciplinas e aulas propriamente ditas. Tudo acontece em pequenos grupos para permitir que os alunos manifestem suas curiosidades e aprendam a partir delas.

“Escola não é prédio, escolas são pessoas; um professor não ensina o que diz, ele transmite aquilo que é. Um projeto político-pedagógico traduz em valores e visão de mundo de uma comunidade, os saberes de uma comunidade terão que ser inseridos no currículo de uma escola”.

José Pacheco

Ainda para ele, quando se fala do egresso à escola, fala-se, na verdade, do egresso às aulas. “Numa aula não se aprende nada e, portanto o que é preciso não é regressar à aula, mas partir para a nova educação. E quando eu digo que acompanho professores que não perderam o contato com os alunos e que os alunos não perderam 5 meses de conhecimento, é porque eles criaram ciclos de vizinhança diante do paradigma da comunicação. E quando voltar ao prédio da escola, não será possível aprender somente estando no prédio, mas em qualquer lugar”.

Relações família e escola

Para o escritor e ambientalista Ailton Krenak, uma das principais lideranças indígenas do Brasil, e que também participou do Grande Encontro da Educação, a pandemia revelou ainda famílias desesperadas em conviver com suas crianças em casa. “Assim surgiu a escola no século 20, quando as famílias enviavam seus filhos para verdadeiros depósitos e não arcar com a responsabilidade de serem orientadores das crianças”, ressalta.

Na Europa, as crianças já foram às ruas para fazer protesto dizendo que os adultos roubaram seu futuro. É uma acusação grave o suficiente para colocar em questão toda oferta que o mundo adulto dirigiu a essas crianças, desde brinquedos, o entretenimento e também a ideia de que estamos formando pessoas melhores para viver num mundo cada vez mais complexo”, diz o líder indígena.

Para Krenac, o problema é “exatamente a de jogar essas crianças em mundo totalmente enigmático, cheio de armadilhas, e dizer a eles que tem um conteúdo que vai ajudar eles a viverem. É mentira. Não tem conteúdo nenhum possível de preparar uma pessoa para viver num mundo em erosão”, alerta.

Segundo o ambientalista, nós estamos vivendo a experiência de exaurir as fontes de vida desse planeta em que vivemos. “Toda fúria de consumo que essa humanidade se meteu e não sabe mais dar conta disso. Nós conseguimos acumular tanto problema, que estamos em colapso”.

E completa: “Precisamos pensar com calma como vamos rever a saída dessa fase de contágio e quarentena, para que não comecem, por aí, a jogarem as crianças fora de casa, jogar no colo dos professores, como se fosse a salvação. Isso pode ser muito pior. É uma falta de oportunidade de reposicionar nossa ideia de comunicação. Educação é um campo vasto de imaginar campos vastos de aprendizagens, comunidades de aprendizagens.

Vida em comunidade

Para a arquiteta Cláudia Passos, é preciso criar soluções criativas para uma era tão complexa. “E só tem um jeito, é realmente, com calma, pensar aquilo que somos e o que queremos enquanto coletividade. Enquanto a escola estiver preocupada com aquilo que não é essencial, a gente sai da rota de conexão com a vida”.

E enfatiza: “Não existe fórmula para a crise que vivemos agora, mas, com certeza existem múltiplos processos. Também acredito que parte desse processo vai ser muito pela dor, que o processo da pandemia é uma forma de mudar esse comportamento”.

José Pacheco e Cláudia Passos integram a equipe da EcoHabitare, consultoria de projetos educacionais que promove assessoria à instituições escolares através de arquitetura sustentável, sensibilização dos educadores, formação em comunidade e escolas em transição. 

Por uma educação mais cidadã

O futuro só vai existir se percebemos que ele é agora”, diz a arquiteta, urbanista e educadora, especialista em arquitetura escolar, Cláudia Passos. “A educação precisa ter esse olhar. Urgência de a escola se reinventar pensando no agora. É isso que estamos fazendo ao encontrar pessoas que tenham a mesma sede que nós em relação a isso”, disse ela durante o Grande Encontro da Educação.

Cláudia não acredita numa nova educação a longo prazo e sim num currículo que faça sentido para a vida. “Nova educação para o futuro? Não, é educação do agora. Educação que parte do coletivo, do local, do território e que façam ações regenerativas no ambiente a partir do seu entorno para o mundo”.

Segundo José Pacheco, estamos longe de palavras como solidariedade e empatia: “Ouço sempre dizer “educar para cidadania”. Não. Deve ser “educar na cidadania”, no exercício desse princípio de que individualmente sou responsável pelos meus atos”.

O mestre em Ciências da Educação diz ficar perplexo com os brasileiros que visitam as escolas da Finlândia para buscar exemplos de boas práticas na educação. “Não têm que ir a lugar algum. Há muitas Finlândia no Brasil, muitas comunidades indígenas, por exemplo, que nos indicam muitas coisas”, afirma.

Para o educador, o maior obstáculo da educação hoje “sou eu, minha cultura pessoal, a cultura pessoal dos professores, que não nos deixa tomar uma decisão ética. Passamos por uma formação individualista, hierárquica e padecemos desse defeito”.

O papel do professor

Na visão do líder indígena Ailton Krenac, o século 20 arruinou as relações pessoais e criou uma torre de babel. “Nesse mundo em que renunciamos a responsabilidade de ser cidadãos intelectuais, estamos entregando tudo. Uma criança não pode viver nesse ambiente tão sórdido achando que está convivendo em uma comunidade”. Para ele, a sala de aula é igual ao chão de fábrica. “Os professores serão extintos como o chão de fábrica”.

“É muito desgastante a profissão de professor”, cita José Pacheco. E completa: “Não é uma proposta gringa que vai resolver o Brasil. A nova escola é aquela que eu conheci nas comunidades indígenas do Brasil. Juntar afetividade africana e tribo. Depois o ensinamento que as favelas nos dão. Finalmente os imigrantes, o que os japoneses trouxeram, os italianos, os portugueses. É preciso tudo isso, mas respeitando a cultura popular. A escola é da comunidade, e não é o prédio, são as pessoas”.

Segundo José Pacheco, é necessário três movimentos para cuidar do professor. “Assim como a escola que conhecemos teve início nos conventos da França pós-napoleônico, é preciso desenclausurar, criar equipes de profissionais e abandonar o individualismo em sala de aula. É em equipe que se constroem projetos, sozinho ninguém faz nada”, diz.

“Depois, como teve origem desse modelo na revolução industrial inglesa, é preciso desusinar. E como na Prússia, é preciso desmilitarizar. Aqueles professores que tomaram a decisão ética de mudar, vão mudar”, afirma Pacheco.

Vale lembrar que o Covid-19 trouxe, acima de tudo, a oportunidade de rever como nos relacionamos em sociedade e com o meio ambiente. Agora, é nosso dever como cidadão refletir sobre como se preparar para as próximas crises com respostas mais humanas. Isso inclui o papel da educação humanista, uma comunidade escolar que envolva a todos. Que deixe o legado de construção e que não destrua um amanhã mais humano.

Leave A Comment

Subscribe to our Newsletter




    ×